quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O conto de uma vida

Hoje, depois de um café da manhã um pouco nada saudável, mas necessário (uma xícara pequena de café de vez em quando faz milagres que a natureza não explica), estava eu, a ler uns escritos, escutando umas velharias, e surpreendentemente, me lembrando de uma pessoa – que hoje não sei se posso chamar de amiga, porque acho que nunca a entendi de verdade… ou talvez nem o quisesse - que já quase havia se desvanecido da memória. Depois de passadas algumas décadas, uma pessoa acaba se distanciando da sua juventude e começa a ver o inevitável vindo pela frente. Mas antes disso, tenho uma história pra contar.

Ana Carolina “Mayakovskaya” Andrade e eu andávamos na faculdade pelos nossos idos vinte e poucos anos, e foi mesmo lá que a conheci. Era uma menina linda e adorável, mas de gosto pouco ortodoxo (ou será que posso chamar aquilo de des-gosto?!) pela moda e pelas coisas que vestia (na verdade tenho a impressão que ela só se vestia porque era estritamente necessário… mas nunca a vi andar de pijamas pela sala de aula). Usava um corte de cabelo tão pouco ortodoxo quanto as suas roupas (aquele liso pontiagudo, curto e basiquíssimo fazia um conjunto perfeito com a sua quase ideia de não-roupa) e bem, a única coisa que a fazia ser descoberta uma pessoa adorável, à partida, era a conversa dela. Era-se mesmo meio difícil achar alguém que não tivesse nada a dizer nos corredores de Letras e Belas Artes daquela época (isso era requisito básico para os loucos que queriam se arriscar pelo livre pensamento e alguns pela tinta da pena) e menos difícil, na verdade, comum, era ver alguém que simpatizasse com as ideias de Marx (as verdadeiras, não com o que fizeram com elas na ex-URSS) porque achávamos que isso podia mudar o mundo… queríamos mudá-lo de fato, e sim, naquele Brasil de meados da década de 70, gostávamos de ir a cafés - leia-se, fumar uns charros escondidos - e discutir sobre tudo, ou quase (lembro-me que os assuntos variavam da morte do Herzog ou a independência de Angola à Nietzsche ou Kierkegaard – nada mais apropriado pra se discutir em um boteco…), assistir filmes do Godard (que sinceramente os preparados de erva ajudavam a entender bem melhor) e era assim, “nada de muito extraordinário” naquela pacata cidade então quase provinciana que era a nossa BH. E talvez porque gostássemos de seu ar juvenil e quase maroto, BH ia ser sempre uma jovem provinciana na nossa cabeça.

Mas voltemos à Carol. Ela fazia parte do meu grupo de amigos e acho que tinha um estranho desejo de morte violenta, ainda mais forte que o meu por reconhecimento do meu heroísmo fake: havia que se defender uma ideia, sempre, mas sair à noite para grafitar paredes em espaço público em crítica à ditadura e em favor dos exilados era um pouco demais, eu achava. Preferia o sossego dos meus pseudónimos a ter que correr o risco de me deparar com um polícia na rua e nunca mais voltar. Mas a Carol era meio assim. Na maior parte do tempo tinha um sorriso no rosto, gostava de conversas animadas, mas nunca dava as cartas. Tenho a impressão de que no fundo, no fundo, ela era uma tímida incorrigível, que tentava se expor ao máximo para que ninguém visse o que estava logo à vista: que era uma pessoa extremamente infeliz. Foi o que vim a perceber depois. Nas poucas conversas que tivemos sobre a sua infância e o que fizera até ali, Carol sempre me pareceu uma fortaleza emocional quase intransponível: me dizia que não gostava de depender de ninguém em aspecto nenhum, que achava que Nietzsche tinha razão e que a vida era mesmo assim, cada um por si e Deus por todos (embora eu ache que ela não acreditava realmente no que dizia, e talvez nutrisse a mesma não-crença pelo divino que eu tinha). E eu brincava, dizendo que daquele jeito ela ia acabar morrendo virgem, porque ninguém queria comer uma mal-comida de gosto amargo. E ela se ria disso, dizia que tinha uma quedinha pelo Pedro mas me fazia jurar que ele nunca o saberia, fingindo uma intangibilidade emocional que não fazia mais que enterrar ainda mais fundo os seus medos e seus desejos. Apesar disso, dizia que se identificava muito com seu pai, porque não o conhecera. E ela dizia que essa identificação tardia com ele é porque ela nunca chegou a se conhecer completamente (na verdade ela dizia “nem minimamente!”). E sempre que chegávamos nesse ponto da conversa, Carol tentava escapar pelos dedos, tão escorregadia quanto um peixe, e dizia “olha, mas eu tava vendo outro dia uma coisa bacana que a gente podia escrever e tal”…

E eu pensava que éramos mesmo amigas. Mas a Carol me assustava. Era uma pessoa com mais altos e baixos do que o comum (podia variar entre o silêncio total e absoluto numa animada roda de amigos ou podia se fartar de falar entre uma cerveja e outra numa ocasião parecida), e acreditava piamente que um dia tudo ia acabar e que não havia sentido em nada que estávamos a fazer (outra coisa que me assustava era seu niilismo), e achava que devia estudar filosofia depois porque achava estúpido e genial ao mesmo tempo, mesmo que no fim das contas isso não fosse servir de nada, que não entendia como Hegel e Platão poderiam estar inscritos numa mesma categoria e ser estudados num mesmo curso, que adorava o mito da caverna (talvez isso explicava a insistente fixação dela pelo não-ser, ou pelo menos do não-corpóreo ou qualquer coisa assim… me contou um dia que “se um dia pudesse tornar-se éter se sentiria completa”), e que achava que Epicuro é que tinha razão no fim das contas. A verdade é que acho que não me surpreenderia se ela também apoiasse Hitler se ela tivesse nascido alemã alguns anos antes. A Carol dizia que ele também tinha a sua razão. Ela vivia a me dizer que às vezes mais valia uma proposição não correta e bem elaborada do que uma verdade objetiva e incontestável, fácil por ser um dado adquirido. E acreditava mesmo nisso.

Me lembro que numa das últimas vezes que a vi, estávamos conversando uma bobagem qualquer num bar numa noite quente com uns outros amigos. Aquela então estranha figura não conseguia mais esconder seu ar soturno por trás do seu falso e ainda radiante sorriso. E ainda assim, falava, falava como se o mundo fosse acabar. Continuava a contestar com os seus grafites, a gostar de Cinema Novo, fumar os charros de sempre e a ler Sartre. Ela dizia que queria escrever e desenhar pro Pasquim, que queria se mudar dali, que queria ser estrela de rock e morrer nos porões da ditadura e ser cultuada como heroína nacional. A gente se ria muito disso, e sempre tive a certeza de que a Carol era meio fora de órbita mas tinha um grande futuro.

É verdade. E tinha mesmo. Pena que não chegou a ter. Mas hoje acho que seu maior erro era ler Mayakovsky compulsivamente (coisa que só vim saber depois)… Notei a falta da Carol numa semana que ela de repente parou de ir à faculdade e parecia ter se cansado das nossas saídas e das nossas conversas com o pessoal. Tentávamos ligar pra casa dela e saber o que havia acontecido, se tinha viajado, e não tínhamos resposta. Eu e uns amigos fomos até o apê onde ela morava, e parecia não ter ninguém, e pessoa alguma sabia o que havia acontecido. Todo mundo pensou logo que ela havia ido em uma viagem pra descanso da pele, mas eu, com as minhas lentes do Apocalipse, pensei logo que ela tinha tido realizado seu sonho louco de complexo de mártir e finalmente a polícia a tinha visto fazendo um dos seus grafites. Teríamos decretado feriado nacional no dia da morte de Santa Carol, se ao menos tivéssemos a certeza de que isso tinha acontecido. E acho que ela ficaria mesmo muito feliz. Mas o que aconteceu de fato foi os vizinhos notarem um cheiro muito forte vindo do apartamento da Carol, onde ela insistia em morar sozinha (o que se justificava segundo o que ela tinha me dito uma vez: "detesto pessoas que usam a mesma máscara todos os dias...". Paranóia?). E sim, minhas suspeitas não estavam erradas de todo, infelizmente. Depois da notícia que ninguém queria ouvir, o pânico, a incompreensão, a revolta, viu-se um bilhete por baixo da arma do crime, em que se podia ler nas últimas linhas: “me perdoem, sei que essa não é a melhor maneira (não recomendo isso a ninguém), mas parece que pra mim já não tem jeito. Pedro – ame-me”. Tive raiva, me senti muito mal por não ter feito nada antes e depois de tudo cheguei à conclusão de que aquela foi uma morte covarde mas talvez fosse mesmo a única saída. Alguns escritos foram encontrados escondidos entre os seus pertences em várias partes da casa, bem à sombra do alcance de qualquer pessoa, quase camuflados. Pude ler alguns, e aquele mosaico enorme começou a compor a face daquela personalidade frágil e brilhante. Quanto aos maiores amores da vida dela – Mayakovsky e Pedro, segundo os seus escritos – bom, um deve ter ficado numa imensa tristeza póstuma a ver alguém usar a sua anti-recomendação como modelo de morte mais de quarenta anos depois da sua. Quanto ao outro, parece ter absorvido a interioridade e o humor soturno da sua amante travestido com os mesmos sorrisos, como se fosse uma maldição saída da pena de E. Allan Poe.

E eu depois disso comecei a grafitar paredes e fui trabalhar no Pasquim.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Pra não deixar passar em branco










Ou em preto (minha cor de fundo favorita!). Porque se uma imagem vale mais que mil palavras, várias delas então me economizam um monte...

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Mais uma

E hoje começa o U. Frame...! Que rufem as câmeras! ;-)