domingo, 16 de novembro de 2008

Ême, êne, é, ême, ó

É estranho como as coisas acontecem e vão acontecendo quando você tenta se dar conta da progressão e da lógica delas. Uma foto, uma pergunta, uma tarde, de vez em quando são santos remédios para cabeças cheias de assuntos mais importantes para se tratar que a própria existência parca e consumida às pressas, como um prato indigesto de que somos obrigados a nos satisfazer famigeradamente.
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As fotografias, fotografias… suportes da memória a curto prazo que às vezes não tem cheiros nem cores, talvez nem as cores com que entraram pelas lentes de uma câmera-lixo, e tudo isso fica ainda mais líquido levando-se em consideração que também o suporte físico deixa de ter lugar… acumulam-se imagens em telas de LCD sem que ao menos as tenhamos na lembrança – o que não necessariamente é o mesmo que não as tê-las na memória. Será que as fotos dos outros são as minhas memórias? Será que me aproprio ou posso me apropriar delas porque à partida são mesmo dos outros, ou será que são mais minhas exatamente por isso, por serem dos outros?… talvez por eu tê-las simplesmente vivido ao invés de tê-las tentado congelar e reter num instante fugidio da memória, que me fugiu exatamente por eu tê-lo tentado reter?
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Como congelar o tempo? Eu, se pudesse, congelá-lo-ia eternamente, só para não ter que senti-lo passar por mim olhando-me com o desdém de quem tudo pode fazer… sinto-o líquido, fluindo de dentro para fora e de fora para dentro, numa diferença enorme de fluxo (o fluxo que vem de fora sempre aumenta em progressão métrica geométrica, e o de dentro é sempre quase centimetrado)… como reter o tempo? Como reter os instantes? Como congelar essa água que flui quando se vê uma folha dourada se desprendendo de uma árvore, uma peça de música que toca no fundo, um poema que se quer ter sempre perto dos olhos e do coração, a emoção de se estar num lugar em que se pode entender, absorver e se raciocinar com a certeza de que se consegue captar absolutamente tudo (ou quase) por causa de uma língua tão linda quanto sensível que interliga almas e culturas…
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Não sei, talvez a melhor forma de se congelar o presente é vivendo-o, e não tentando elaborá-lo antes de acontecer. Acho que vivemos perdidos lembrando excessivamente do passado e tentando planejar o futuro igualmente em excesso, tentando ensaiar o maior número de cenários possíveis como se tivéssemos toda a teoria da Física Quântica compilada entre as orelhas, talvez engatilhada para um uso mais útil que apenas ensaiar. Confesso, eu não a tenho. E mesmo assim, tento ensaiar como se tivesse toda ela bem guardada e embrulhada para presente, prestes a se abrir a qualquer conexão sináptica mais forte ou com alguma elevação de temperatura cerebral decorrente de falta de sono prolongado ou stress acumulado…
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E assim vai-se, caminha-se, “vai-se andando”, como detesto ouvir dizer. Anacronicamente, no descontentamento de não se poder reter o presente por nunca estarmos atentos a ele o suficiente nos pequenos detalhes. Acho que quando se faz memórias - ou melhor dizendo, lembranças - é necessário que se tenha os cinco (ou seis, sete, ou oito…) sentidos bem atentos, completamente absortos na experiência, o que às vezes não é tão fácil assim quando se tem a terrível mania da antecipação e da assimilação relâmpago e fácil digestão das imagens, cheiros, sensações e lugares. Assim uma pessoa pode acabar tendo uma indigestão bem severa e talvez conseguir o contrário do que queria quando saiu à procura de experiências para colecionar, porque, como bem lembrou Kierkegaard… lembranças não são o mesmo que memórias… lembranças sobrevivem ou são ressuscitadas num ambiente completamente adverso àquele em que ela se deu (exatamente por causa desse contraste), são as sensações guardadas, as impressões, os sentimentos, as conexões reais e naturais que aconteceram na mente e na alma. Deixam uma marca indelével. As memórias precisam ser sempre ser alimentadas por algo que tencione e suscite trazer a lembrança à tona (mas que já não é lembrança se precisa de estímulo, então…). Mas é imediatizada e não demora muito a perder as cores e os sabores. É o tipo de coisa que ajuda muito em termos práticos, mas acho que não se mede a extensão de uma pessoa pela extensão da sua memória, mas sim pela extensão das suas lembranças (o que também é controverso, pode ser que a memória também seja uma boa medida…).
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Mas quero poder guardar mais lembranças que memórias.


Guardar (Antônio Cícero)

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que de um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Oh! Frankfurt...




Passado o “deslumbramento” inicial (que acho que é uma coisa que ninguém devia perder nunca, nem pela própria cidade), nada melhor que lembrar e relembrar…

Depois de um vôo bem chato – sim, pra quem já passou mais de 10 horas num “vuelo non-stop”, menos de 3 horas agora são incômodas e chatas… - finalmente cheguei ao “galpão” de Hahn, perto de Frankfurt, Köln e mais alguns lugares, e bem, ainda tinha mais uma hora e meia de ônibus pra chegar à cidade que eu queria. Depois de falar com a minha adorável host, a Helena, finalmente saí do galpão e estava a caminho da cidade dos arranha-céus. O caminho que eu via passar pela janela tinha mesmo uma paisagem convidativa, cheia daquelas florestas invernais com folhas salpicadas de dourado e ocre, algumas ainda pendendo das árvores e muitas delas pelo chão, sob o signo daquele céu azul de onde o sol brilhava timidamente, iluminando um trajeto que cheirava a bucolismo e que desembocava num contraste quase violento com aquele coração financeiro da Europa. Com a companhia de Nicola Conte, José González, e claro, Led Zeppelin no player, cheguei finalmente à Hauptbanhof, a estação principal dos trens em Frankfurt.

Aquele lugar coberto de um enorme céu metálico à la século XIX tinha uma data de trens da DeutscheBahn a ir e vir, uns talvez com atraso, outros talvez tão pontuais como se imagina serem as pessoas daquela parte da Germânia. Aquilo era um misto de shopping center, “quiosqueria”, estação e centro de informações, com a comodidade de terem telefones espalhados por todas as esquinas pequenas. Sendo assim, poucos minutos depois de ter usado um daqueles telefones, lá estava a Helena, num elegante casaco escuro e com um sorriso que me fez sentir confortavelmente bem-vinda à “Mainhattan”, como dizem.

A primeira coisa que fizemos foi parar em um café (só não me pergunte o nome!) quentinho, com almofadas e revistas em uma janela que dava para a rua - e para a GoethesHaus - e minha escolha não podia ser outra além da minha primeiríssima dose de Apfelwein – “pure, please… kein Saft mit der Wein, bitte!” – e ali ficamos a conversar por um tempinho, aproveitando o calorzinho do lugar e a minha inevitável expressão de novidade no rosto. Depois, no caminho até a casa, mais papo, a vista dos primeiros arranha-céus, o cheiro do parque que dá as frentes (ou as costas?) para o Banco Central Europeu e a Alte Oper, linda, com uma fonte na frente e uns cafés do lado, tipo “parisién style”. Nas ruazinhas pelos lados da Grüneburgweg, casas ao estilo neoclássico e um mercado de flores e vegetais que é uma graça.

Chegando à casa, tenho a surpresa de ser recepcionada por um adorável canino, mais conhecido como Pumba, que sem barulho nenhum recebe afagos de visitas e se sente feliz por dormir na cama dos seus pais, Georg e Helena. Adoráveis, todos eles… e com muito estilo. :-) Estilo, aliás, é mesmo uma palavra que define esses dois estudantes de Filosofia que conheci no país de Nietzsche e Marx. Helena estava sempre a sonhar com uma vida em meio ao século XIX, e Georg, um sujeito interessante e misterioso com quem gostaria de ter conversado mais, era mesmo o par perfeito da simpática menina de cabelos louros.

Feitas as devidas apresentações, era hora de perambular pela cidade, como boa turista que sou. :-) Mapa na bolsa e algum Alemão cru na língua, encontro arranha-céus, esculturas, cafés, ruas de calçadão, a Bolsa de Frankfurt (me doeu um pouco ver isso justo nessa época, mas acho que nem é pra tanto)… foi bom andar pela Schillerstrasse e outras ao redor sob aquele sol pálido que iluminava as praças, shopping centers, bancos e as muitas livrarias com preços convidativos, em meio àquela salada de alemães, turcos, indianos e gente da mesma categoria que eu, turistando talvez com essa mesma estranha sensação de não se querer ser turista…

Comi então a minha primeira bratwurst, pedida meio em Alemão, meio em Inglês e com um “danke schön!” no fim, ao que escuto um “you are welcome!” de volta, e depois continuei deambulando por aquela cidade que me pareceu ter um custo de vida abaixo do que eu esperava (que ótimo!), e fui finalmente parar ao Römer, essa praça de fundação romana que vem nos cartões postais e na imaginação dos turistas que visitam a cidade. É mesmo linda, principalmente à noite, com uma afluência enorme de pessoas e o rio Main logo à frente. E por falar em rio Main, atravessá-lo à noite foi mais que tirar fotos das ondas na água (hum… à noite? Essa foi mesmo má! hehe) e dos prédios que emergiam ao fundo… houve um bando de malucos que tava a seguir o curso do rio em uns barquinhos - na verdade, caiaques - munidos de chapéus de “viking-horns”, luzes intermitentes (seriam árvores de Natal ambulantes?), música e muita gritaria… pensei que fosse algum tipo de feriado nacional ou alguma coisa que se fazia de praxe, mas depois vim a saber que não era uma manifestação regular ou temporal. Achei bacana, e pensei que podia ser por algo que aconteceria no dia seguinte (de fato, houve a Maratona de Frankfurt no domingo) ou estavam tão felizes por ter mais uma brasileira simpática a olhar a cidade que não podiam conter a alegria e tiveram que se manifestar de alguma forma… modéstia pouca é bobagem lá nos trópicos!

Depois de ter o caminho de volta feito, e feliz por não ter sido difícil achá-lo sem usar o mapa, uma saidinha com o Pumba pelo parque, mais papo e um vinhozinho que ninguém é de ferro… estava bem feliz por pensar que podia me virar sem ter que depender inteiramente do meu Inglês, já que algumas das pessoas que encontrei ao longo do caminho não falavam outra coisa senão Deutsch. :-)

No outro dia de manhã, um domingo cinzento e frio, fui logo pra varanda ler um jornal e pensando que aquele gelo todo me faria muito bem pra acordar os neurónios. Bom, e no fim, fez mesmo… mais conversa no café da manhã com os meus adoráveis hosts (que a essas alturas devem até saber quando é que o Lula nasceu), era hora de traçar o próximo plano. Minha missão era então ir ao Städel Museum do outro lado do Main. No meio do caminho me chama a atenção uma batucada que se agitava persistentemente à distância, ainda meio que sob o efeito Doppler, que vai diminuindo à medida que me aproximo. Não era outra coisa senão a Maratona de Frankfurt, com direito à Coca-Cola pros maratonistas, transmissão na TV, muita música e uma grande festa na frente da Alte Oper. As estrelas principais? Um grupo de batuque de – adivinha de onde! – (we’re EVERYWHERE…) e os gringos sorrindo e alguns gingando naquele frio que quase cortava os meus ossos tropicais. :-)

Depois de mais um pouco deambular, uma parada no Römer e um shake da Haagen-Dazs antes, pra continuar a via sacra. Vi um museu atrás da pracinha, uma loja de brinquedos de madeira todos feitos à mão (hmmm, gracinha de Quebra-Nozes!), quase à Grimm, um septeto de cantores-músicos uniformizados à anos 40 sob a pele de militares russos (me pareceu) e cantando uma músicas tão mellow que era de comover qualquer passante. Mais à frente, um sorridente malabarista chinês que não entendia nada do que falassem com ele, mas que tinha uma concentração digna de um giggler do circo de Pequim ou de Moscou… e depois disso, algumas ruínas (cujos intertítulos não consegui ler muito bem, que frustrante…) e uma loja de souvenirs escondidos atrás da praça, e finalmente o outro lado do Main pra completar o meu destino inicial.

Mas acabo mudando de idéia ao me lembrar que o Deutsches Filmmuseum também ficava por ali, e, Bosch e Vermeer que me desculpem, mas tive que dar uma voltinha noutro lugar. :-) A visita toda daria um post talvez tão grande quanto esse, mas poder me virar mais uma vez sem o meu Inglês, poder ver os antepassados da camara obscura, filmes do Meliès e dos Lumiére rodando, tocar na armadura dourada da Maria-Robot de Fritz Lang (eu TIVE que passar o cantinho da unha no dedo da estátua pra ver se era de verdade… nem eu conseguia acreditar naquilo…!) e ver os scores originais da trilha sonora do Metropolis, poxa… foi simplesmente mágico e fez toda uma tarde se parecer com duas horas passadas depressa. Depois de algumas horas ali dentro, percebi o meu sacrilégio de não ter papel e caneta na mão (o que não costuma acontecer!), providenciei-os às pressas, mas, sorte minha… já tinha conseguido alguns registros em imagem daquele pequeno santuário. Fui a última pessoa a deixar o museu (ok, isso nem é a primeira vez que me acontece) e ainda antes disso fiquei de papo com uma senhora muito simpática que trabalha no museu, interessada pelo meu interesse e me desejou toda a felicidade do mundo depois. Um amor de pessoa.

De volta à casa, aqueles inevitáveis comentários de quem acabou de descobrir a pólvora, e pra fechar a noite, claro, um filme. Nada como ver Waking Life ao lado de gente que faz da Filosofia o objeto de estudo da vida toda... :-) E assim termina a noite e o fim de semana, porque no dia seguinte eu tinha que acordar bem cedo para deixar Chicago Am Main e voltar pro meu Porto pacato. Mas isso também já rende outra história…